Guerra entre “Tele Sena” e “Papa-Tudo” fez SBT ameaçar liderança da Globo e emissora carioca decretar falência anos depois

Os anos 90 não foram marcados apenas pela acirrada briga de audiência entre Globo e SBT, mas também pela preferência do telespectador através de loterias vendidas como títulos de capitalização. Há 28 anos, Globo e SBT passariam a disputar quem seria o maior tele-bingo brasileiro. A Tele Sena foi lançada em novembro de 1991 pela Liderança Capitalização S/A, empresa do Grupo Silvio Santos e responsável pela manutenção financeira do SBT por quase duas décadas. Sem a Tela Sena, Silvio Santos já admitiu para a Justiça que o SBT e suas empresas já teriam ido à falência e grandes investimentos como o CDT da Anhanguera, aquisição de novos equipamentos, parcerias milionárias com estúdios de Hollywood e formatos de sucesso, jamais poderiam ter sido bancados, ainda mais numa fase onde o custo do SBT não se pagava pelo pequeno aporte financeiro dado pelas receitas de publicidade. As agências sempre preferiram apostar na Globo, do que na programação do canal de Silvio Santos, vista como populesca demais até o início dos anos 2000.

Criado no começo da década de 90, o chamado “Papa-Tudo” era na verdade, uma tentativa da Rede Globo, através de parceria com a Interiuniun Capitalização fazer frente a Tele Sena de Silvio Santos. Seu formato era bastante semelhante a de um tele-bingo, e tinha sua apresentação centrada na figura do jornalista César Filho, além de Fausto Silva e Xuxa Meneghel como garotos-propaganda. Na época, o “Papa-Tudo”, chegou a ser conhecido como o “Baú da Felicidade” da Rede Globo, enchendo os cofres da emissora carioca. Durante os intervalos comercias da emissora, a apresentadora Xuxa Meneghel incentivava seu público alvo, as crianças, a pedirem a seus pais que adquirissem o título de capitalização. Entre 1994 e 1995, a corretora começou a lesar seus investidores com o não pagamento dos prêmios oferecidos, algo em torno de 150 milhões de títulos e aproximadamente R$ 250 milhões (R$640 milhões em valores atualizados) e o título foi extinto em 1996. Em 1998 a Interunion Capitalização sofreu uma intervenção federal sob a alegação de gestão fraudulenta, tendo em meados da década de 2000, o banqueiro Artur Falk condenado e preso por crimes contra o sistema financeiro nacional e a Susep, autarquia do governo federal, ficou responsável por gerenciar a massa falida da empresa. Apesar de milhões de telespectadores terem sido lesados, o que é um mistério até hoje é o motivo pelo qual a Rede Globo jamais foi processada. Se a emissora tivesse sido responsabilizada junto com a corretora do Papa-Tudo, talvez ela teria ido à falência. Coincidentemente, anos depois, em 2003, a emissora quase fechou suas portas numa das piores crises que atingiram o conglomerado de empresas da Família Marinho. A falência foi decretada devido dívidas bilionárias contraídas com a implantação da TV a cabo e por satélite no país, segundo o site “Memória Globo”.

O consumidor da Tela Sena, assim como foi o Papa-Tudo, que tinha Xuxa e César Filho como principais vitrines, funcionava da mesma forma. O consumidor adquire o produto em casas lotéricas ou agências dos Correios e após um ano, pode resgatar 50% do valor pago, com juros e correção monetária, ou acrescentar mais um pouco e trocar por outro título atual. Enquanto Silvio Santos é desde o início a imagem da Tela Sena, os dois títulos brigavam pela preferência do consumidor com formatos semelhantes, abusando de famosos influenciadores e muitos prêmios. O SBT se tornou a casa da Tela Sena, enquanto que a Globo apostou sua sobrevivência e testou sua soberania no falecido “Papa-Tudo”.
Silvio Santos fez confissão sobre o real objetivo de criar a Tela Sena

Em 19 de agosto de 1994, o SUSEP, que regula os bingos televisivos disse que não via irregularidade no Papa-Tudo e na Tele Sena. Ainda assim, uma ação popular foi ajuizada em maio de 1992 pelo ex-deputado estadual José Carlos Tonin, PMDB-SP, por meio do advogado Luiz Nogueira, defende que a Tele Sena é uma cartela de jogo disfarçada de plano de capitalização, uma vez que ela devolve aos compradores apenas metade do valor pago, R$ 3, um ano depois. Segundo a ação, a Tele Sena contraria o decreto 261/67, que determina que as sociedades de capitalização devem funcionar como poupança e condenou os réus a recolherem R$ 50 milhões aos cofres públicos. Em 1997, a Folha de S.Paulo noticiou que o juiz João Batista Gonçalves da 6ª Vara Federal de São Paulo, nos autos da ação popular que o juiz moveu há cinco anos e na qual ele anulou o ato administrativo da SUSEP, que autorizou a Liderança Capitalização S/A a emitir cartelas de jogo travestidas de título de capitalização. Para o juiz, a Tele Sena “Não é capitalização. É jogo camuflado. Lesa o consumidor e os Correios”, e que “Também foram considerados lesivos à União os contratos de comercialização dessas cartelas pelos Correios a custo irrisório”. Para o magistrado, “a Tele Sena foi adaptada para ser vendida às classes menos favorecidas, sob a forma de loteria e com valor de devolução reduzido à metade, após um ano de desembolso. Com pequena capacidade para poupar, as classes menos favorecidas adquirem a Tele Sena, iludidas por uma propaganda malsã e enganosa”.
Em 2001, desembargadores do Tribunal Regional Federal de São Paulo criaram uma ação pedindo o fim da Tele Sena. Em carta manuscrita, dirigida como forma de sensibilizar os desembargadores que analisam apelação cível à ação popular que pede a decretação da ilegalidade da Tele Sena. Silvio Santos revelou como conseguiu montar e depois impedir que o SBT, fosse à falência, há quase dez anos. Silvio Santos admitiu ter criado a Tele Sena, em 1991, para cobrir os prejuízos do SBT, que já não conseguia se sustentar e crescer apenas com publicidade e os lucros do carnê Baú da Felicidade. Silvio Santos argumenta que a Tele Sena é legal e que seu fim o levaria à falência, prejudicando o SBT e favorecendo a Globo, pois segundo o empresário, até o pacote de filmes da Warner e da Disney que o SBT vem exibindo, e que tem superado a Globo no Ibope, foi viabilizado pela Tele Sena.
“A Tele Sena gerou em oito anos um lucro que está sustentando todas as empresas do grupo, que dão prejuízo em razão dos altos investimentos na própria rede de TV e na abertura de novos negócios (Internet, TV a cabo, banco etc)”, escreveu Silvio Santos.
A carta em questão foi enviada à desembargadora federal Therezinha Cazerta, que interpretou como uma confissão de que a Tele Sena é uma “loteria disfarçada de título de capitalização”, a desembargadora concluiu seu voto, também contrário à Tele Sena. Na decisão, ela reproduziu trechos da carta de Silvio Santos. Diz que o documento, “antes de socorrê-lo, acaba por ratificar mais ainda que a Tele Sena é ilegal e lesiva à moralidade administrativa”, e que “Na verdade, a Tele Sena somente enriquece o senhor Silvio Santos”. Em novembro de 1999, o relator do processo, desembargador Newton de Lucca, deu voto contra a Tele Sena e concluiu pela ilegalidade da Tele Sena, mas reformou a decisão sobre a multa de R$ 50 milhões. Em seu voto, o desembargador federal apontou que a Tele Sena é “um desvio de finalidade” do decreto 261/67, que não “cria poupança” e que se vale do “apelo lúdico dos sorteios”, realizados pelo “homem de vendas mais prestigiado da TV brasileira”.
Em 2002, o Ministério Público Federal acusou a Liderança Capitalização de “apropriação indevida” de R$ 2,3 bilhões do faturamento total de R$ 5,75 bilhões que a Tele Sena nos últimos 11 anos conseguiu dos compradores de cartelas da Tele Sena. A procuradora regional da República Maria Iraneide O. Santoro Facchini concluiu que a Tele Sena não funciona como título de capitalização, objetivo para a qual foi criada e aprovada, mas como jogo de azar comum e segundo o texto do parecer, a Tele Sena é uma aventura que descapitaliza a população carente e enriquece o Grupo Silvio Santos. Embora tenha condenado a Tele Sena em primeira instância, a Justiça tem entendido como legal o contrato, para venda de cartelas, do grupo Sílvio Santos com a ECT (Empresa Brasileira de Correios). No seu parecer, a procuradora afirma que o contrato é lesivo.
Em 2007, por decisão unânime, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a legalidade da Tele Sena. Os ministros, acompanhando o entendimento do relator, ministro Luiz Fux, anularam decisão da Justiça Federal da 3ª Região concluindo que o autor de ação popular não tem legitimidade para propor ação visando à anulação de contratos entre pessoa jurídica e outras entidades, nem para pleitear defesa de outros consumidores, sequer para reivindicar valores obtidos com a venda dos títulos de capitalização. Posteriormente, foi aberto um processo na Corte Especial daquele Tribunal para apurar possível parcialidade do ministro Luiz Fux, em favor da empresa Liderança Capitalização S/A.
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*Escrito pelo jornalista Júlio César Fantin – Bastidores da TV
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