Após 48 anos, Galvão Bueno anuncia saída da TV Globo

O narrador que se autointitula um vendedor de emoções terá, nos próximos meses, que saber administrar as próprias. Nesta quinta-feira, Galvão Bueno se despede da narração de jogos da seleção brasileira no Maracanã em TV, 48 anos depois de estrear no maior palco do futebol num frio e sonolento empate entre Botafogo e Olaria. De 1974 para cá, o “tijucano, rubro-negro e salgueirense” – como fez questão de frisar na entrevista abaixo – foi a voz das maiores conquistas do esporte brasileiro: do tetra, do penta e, assim deseja, do hexa no Qatar, quando encerrará seu contrato com a TV Globo e pretende mergulhar de cabeça no mundo digital, que já vem fazendo parte de sua rotina.
Em entrevista exclusiva concedida ao jornal “GLOBO”, em um hotel na Zona Sul do Rio, Galvão falou longamente sobre passado, presente e futuro, as críticas sofridas, a versão “mais light” com as redes sociais, mudanças de plataforma, sucessor na narração, além de passar a limpo uma carreira de quase meio século. “Eu sou um vendedor de emoções, mas sou um equilibrista. Eu ando há 48 anos no fio da navalha.”
Como está seu futuro pós-Qatar?
Eu tenho contrato com a Globo até o fim do ano. E a gente resolveu que iríamos investir muito na minha participação na Olimpíada e, esse ano, seria seleção brasileira e Copa do Mundo. E estamos conversando para ver o que será depois do dia 18 de dezembro, que é o dia da final. Espero estar com saúde para estar lá.
E depois?
Temos até lá para resolver o que vai acontecer. Eu diria que hoje tenho uma consciência de que seria minha última Copa do Mundo narrando em TV. Tudo tem seu tempo. Ao mesmo tempo que termina o contrato para essa minha sequência de 41 anos na Globo — com trabalho do dia a dia, programa, narração de jogos, com essas coisas — , a tendência nessa conversa é que isso pare depois da Copa do Mundo. Mas estamos negociando outras coisas. Outros caminhos. E, muito provavelmente, muita coisa nesse mundo digital e outras plataformas dentro do Grupo Globo. A Globo é minha casa. Então nossa conversa nesse momento é: o que vai acontecer, como deixaremos as portas abertas e quais portas serão utilizadas depois do dia 18 de dezembro, basicamente é isso.
Narração é certo que não mais?
Rapaz…. (pausa). É impossível você dizer no mundo “não, nunca mais”. A vida me ensinou isso. Mas neste momento eu diria: narração em TV aberta, não mais.
E como você está lidando com isso?
Não sei, tem muito jogo para fazer ainda, eu estou sonhando com o hexa. Mas ainda tem muita coisa pela frente, ainda estamos em março. Estamos conversando, certamente novos projetos existirão e as portas estão abertas. Mas eu acho que eu vou mergulhar de cabeça nesse mundo maluco aí do digital.
De certa forma, a relação com as redes sociais favoreceu essa imagem mais light do Galvão?
Com certeza, eu tive momentos muito pesados, porque eu fazia tudo, todas as decisões. Eu me lembro de passar momentos difíceis no estádio. O corintiano achava que eu era palmeirense, o palmeirense achava que era corintiano, o flamenguista achava que era vascaíno, era um inferno. Fui ‘consagrado’ no estádio várias vezes, xingado no Maracanã lotado, por um Morumbi lotado. Era muito pesado pela rivalidade do futebol. Aí eu fui morar fora, fiquei sete anos fazendo seleção brasileira, Fórmula 1, uma paixão.
Então, eu fiquei sete anos fazendo menos esses confrontos de rivalidade. Agora com as redes sociais, não sei do que vão me chamar: faço narração de totó, me chamam de ‘velho do barco’ (em referência a um vídeo que postou nas férias, em uma embarcação) e ‘o titio não sei o quê’. É legal, é bacana e vai fazer parte do meu futuro, depois da Copa do Mundo.
Você se coloca como um vendedor de emoções, mas como é gerir as próprias emoções?
Eu sou chorão, cara. Muitas vezes as câmeras já me pegaram chorando. Eu chorei no título do Ayrton, no do Nelson Piquet. Tem um amigo que é um pouco mais velho que eu, a gente se fala muito no telefone. Roberto Carlos. Ele tem uma música que diz que ‘se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi’. Eu me emociono. Não faltaram emoções. Foram fantásticas. Espero que seja um ano de ainda mais emoções. Eu faço esporte na televisão desde 1974. São 48 anos. Não sei exatamente como vai ser, mas é claro que vai fazer falta. Vai ter gente que vai lamentar, vai ter gente que vai adorar. Sempre fui polêmico, sempre fiz questão de ser e dizer tudo que eu pensava. Eu vendo emoção e tenho opinião. Sou amado e odiado, hoje mais amado do que odiado.
Teve algum momento que doeu?
O que mais me assustou por algumas horas foi o ‘Cala a boca, Galvão’ de 2010, que veio de uma brincadeira (a frase ficou nos trending topics do Twitter mundial por vários dias). No dia seguinte, pensei “temos uma Copa do Mundo inteira pela frente”. Nosso diretor de jornalismo estava lá, de comunicação, e falaram para levar isso na sacanagem e levamos. Ali foi uma virada. Agora, sou um tiozão bacana.
Vivemos em uma época de cancelamento…
Vivemos em uma época de novos termos. Cancelamento é um deles.
… Sim. Ou de termos que eram aceitos há alguns anos e hoje não cabem mais, mas você nunca foi cancelado pelo que fala ou pelo que falou.
É o meu jeito de ser, de respeitar os outros. Eu sempre estive um pouco à frente no tempo na minha forma de entender que somos todos iguais, independentemente de raça, credo, de cor, de preferências pessoais. Eu sempre pensei assim.
Como foi ver o título do Flamengo do hospital, em 2019, depois de ter sofrido um infarto?
Na hora do jogo, liguei a televisão, queria ver o Luis Roberto, mas era transmissão da Argentina. Foi um barato, você não imagina o desespero do narrador quando o Flamengo fez os dois gols. Então, deu o estalo: “eu preciso ir para o Qatar” (para o Mundial de Clubes). A Globo não quis deixar não. E estava certa, responsabilidade. E quase que deu. Rubro-negro como eu… pode escrever aí, todo mundo já sabe. Sou tijucano, rubro-negro e salgueirense!
Como a torcida lida desde que você falou que era flamenguista?
Sabia que não teve drama? As coisas mudaram nesse sentido. Não é porque digo que sou Flamengo que não dou umas porradas no Flamengo. É a minha obrigação.
Mudou-se a forma de transmitir futebol, é possível imaginar que o seu sucessor continuará com frases marcantes, bordões…?
Ele já tem um monte de frases que são marcantes pra caramba… (risos)
Você ‘sabe de quem’ estamos falando (pergunta em tom de brincadeira, com o bordão que virou a marca do narrador Luis Roberto)…
Não sei…. aí vai de vocês. Quero dizer, eu imagino. É uma imaginação minha.
É uma opinião ou só imaginação?
(risadas) O Cléber (Machado, também narrador), vai ficar p… comigo. Mas ele é muito bom.
E esse estilo vai continuar?
Eu tenho um estilo. O Luis Roberto, o Cléber, o Luis Carlos (Junior), o Milton Leite, o Everaldo, o Gustavo Villani… A transmissão é completamente diferente. Aí vem as mulheres, com o espaço conquistado. Eu faço o jogo de terça-feira, entre Brasil e Bolívia, com o Casagrande e a Ana Thais de comentarista. Em 1974, quando comecei, nem narrando, nem comentando era imaginável. O mundo foi muito cruel com as mulheres por muito tempo.
O que mais mudou desde quando você começou?
Quando cheguei, narrador e comentarista não podiam conversar durante a transmissão. Eu e Luciano do Valle puxamos um ao outro, ter um concorrente assim faz bem aos dois. Hoje as transmissões estão soltas, às vezes até demais. Às vezes dou uns toques: ‘Gente, maneira ai’. Mas sem deixar a alegria de lado. O futebol tem que ser festa. Eu sou um vendedor de emoções, mas sou um equilibrista. Eu ando há 48 anos no fio da navalha. De um lado o que tenho que vender, do outro a realidade dos fatos que não posso esconder. Você fica se equilibrando na emoção e na realidade dos fatos.
Quais os seus três desejos: um até o Qatar, na Copa e depois?
Daqui até a Copa, que Deus me dê saúde e que continue sendo como está, uma preparação para um grande momento. Na Copa, eu quero o hexa, pô. Os meninos podiam ajudar… Quem gritou o tetra e o penta quer o hexa. E que, depois, essa nova fase seja de realizações como foi hoje, mas em um mundo diferente. Que seja em um mundo menos cruel.
E o que você não fez e que gostaria de ter feito nesses 41 anos de TV Globo?
Narrar um título do Guga em Roland Garros e ter um programa de auditório. O primeiro já não dá mais, o segundo… fica a dica.